domingo, 31 de julho de 2011

Slavoj Zizek - Bem vindo ao deserto do real - Posfácio

Posfácio do livro.

Download: http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/bem_vindo_ao_deserto_do_real_posfacio.pdf

Fonte: http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

sábado, 30 de julho de 2011

Jorge Barcellos - "Desfruta ou te devoro. A nova onda do comunismo"

 Em duas obras recém-lançadas no Brasil, o esloveno Slavoj Zizek imagina alternativas para um mundo que vê marchar em direção a um capitalismo autoritário no modelo chinês. 

O artigo é de Jorge Barcellos, doutorando em educação pela UFRGS, coordenador do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, publicado no jornal Zero Hora, 09-07-2011. 

Eis o artigo. 

O que torna profundamente atual o pensamento do esloveno Slavoj Zizek, de quem a editora Boitempo acaba de lançar Em Defesa das Causas Perdidas e Primeiro como Tragédia, depois como Farsa, é seu trabalho sobre a ideologia. Não se trata da retomada de O Mapa da Ideologia, obra sua já conhecida dos brasileiros, mas do aprofundamento de aspectos de O Sublime Objeto da Ideologia (Siglo XXI, 2005, inédito no Brasil). Nesse livro de 2005, Zizek integrou de forma original as percepções psicanalíticas da fantasia à crítica marxista da ideologia. Isto lhe lhe permitiu, pela primeira vez, propor uma teoria de como funciona a ideologia no plano subjetivo: “Não existe a crença comum, o que existe é a crença em que os outros creem”. 

Zizek reconstrói os processos que fazem homens, em determinadas circunstâncias, justificarem e darem um ar de verdade a uma mentira, numa espécie de construção coletiva . O “vamos fingir que as regras funcionam” oculta, entretanto, o fato de que as instituições no capitalismo contemporâneo estão falidas e ninguém de fato acredita nelas. Agimos como na fantasia de Papai Noel: nem os adultos nem as crianças acreditam mais nele. Pior: agimos assim com nossas instituições, inclusive com a democracia. A subjetividade também está sob tremenda pressão da ideologia: cuidado, o capitalismo quer dar um significado a sua vida, diz Zizek. Ele toma como exemplo os anos que passamos consumindo publicidade, uma das melhores formas de se pensar o que acontece com nossa subjetividade. Nos anos 1960, a propaganda automobilista vendia as qualidades de um carro; nos anos 1970, o status que ele oferece ao consumidor para finalmente, hoje, ser a promessa de libertação da sociedade opressora. 

Para Zizek, o capitalismo contemporâneo é profundamente ideológico: “A política desse capitalismo é a despolitização para que não haja mais uma ideologia clara”. Na sociedade de consumo (um conceito caro a Baudrillard), a ideologia vendida é a ideologia da diversão como na expressão latina Carpe diem (“Aproveitem o dia”). Nada mais comprovador do conceito de Lacan – apropriado por Zizek – de gozo excedente, um gozo que nos suborna para mascarar os nossos problemas. A solução, para Zizek, é o retorno à noção de economia política tal como proposta por Marx: politizar a economia, e é nesse sentido que Zizek mais se aproxima de outro teórico do marxismo, Robert Kurz. A ideologia do capitalismo contemporâneo, sustenta Zizek, quer que acreditemos que a economia não tem nada haver com a política: ela quer uma sociedade apolítica, e para isso constrói a ideia de que é besteira discutir política. Nisto reside a radicalidade de Zizek: ele quer que a democracia se garanta sem as influências das pressões de mercado. 

Yannis Stavrakakis, em A Esquerda Lacaniana – Psicanálise, Teoria, Política (Fondo de Cultura Econômica, 2010, inédito no Brasil), deu-se conta que o pensamento de Zizek consolidou-se ao longo dos últimos 15 anos, período em que a psicanálise e a teoria lacaniana passaram a ser recursos importantes na reorientação da teoria política contemporânea. Essa posição, para qual boa parte dos cientistas políticos torce o nariz, origina-se no próprio pensamento de Lacan, que não foi apolítico – ao contrário, fez críticas ao American way of life, ao capitalismo americano e à sociedade de consumo, o que o levou a associar sua noção de mais-gozo à noção de mais-valia de Marx. Nesse caminho estão Zizek, Cornelius Castoriadis, Alain Badiou e especialmente Ernesto Laclau, para quem “a teoria lacaniana aponta ferramentas decisivas para a formulação de uma teoria da hegemonia”, daí a definição de seu horizonte teórico-politico em termos de “esquerda lacaniana”, nítido campo de intervenções políticas e teóricas a partir da psicanálise – mas não somente dela – que parte para a crítica da hegemonia capitalista contemporânea. 

Em Primeiro como Tragédia, depois como Farsa, lançado simultaneamente pela Verso (Londres) e Flamarion (Paris) em 2009, Zizek pergunta se estamos preparados para a história que se impõe sobre nossas cabeças desde os ataques de 11 de Setembro. Ele mostra as manobras por detrás das ideologias levantadas pela atual crise (2008) e que levou bilhões de dólares para os bancos. Para Zizek, o que é profundamente ideológico é tratar as crises do capitalismo como algo estranho ao próprio capitalismo, ideia que deseja vender a imagem de um mercado capitalista regulado de outro modo. Ao contrário, ele nos mostra cada vez mais o capitalismo sobrevivendo abaixo de terapias de choque, num mercado que exige violência extramercado para seu funcionamento. 

Já na obra Em Defesa das Causas Perdidas, Zizek vai contra o pensamento hegemônico que vê a democracia liberal, as vezes dita pós-moderna, como o melhor dos mundos frente ao passado das lutas comunistas. Isso não quer dizer que as “causas perdidas” que defende estejam abrigadas pelo teto do Fórum Social Mundial: para Zizek, seu lema “Um outro mundo é possível” mostra que seus protagonistas ainda relacionam-se demais com a estrutura já posta pelo capitalismo. Para fazer seu caminho, ele faz a opção por retornar ao marxismo a sua maneira, o que tem o peculiar efeito de chamar a atenção mundial sobre sua obra: não há dúvida, o que Zizek faz é tornar sedutor o marxismo para as novas gerações. Para isso articula Lacan, Hegel e Marx com cinema, música, cultura popular e a crítica dos objetos de consumo. Em Defesa das Causas Perdidas, entretanto, padece do problema comum aos grandes pensadores contemporâneos: como produzem demais, escrevem demais, torna-se frequente encontrar traços de obras anteriores nas seguintes. Não há como deixar de ver no capítulo 2, Lições do Passado, o eco de suas obras anteriores sobre Robespierre e Mao, ou dos estudos anteriores que fez sobre o stalinismo publicados em espanhol. Há, entretanto, reflexões sobre o pensamento de Heidegger extremamente originais e que não haviam aparecido anteriormente, contudo. E é claro, Zizek sempre é um grande contador de causos que sintetizam brilhantemente suas ideias. Em um determinado momento de sua obra, ele cita a ficha de um hotel americano: “Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, o fumo está totalmente proibido neste hotel. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de US$ 200”. Assim é o capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recursarmos a desfrutá-lo plenamente. Zizek quer nos mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário ao direitos humanos, como anuncia o caso chinês. E o grande perigo é que ele pode estar certo.

Slavoj Zizek - O materialismo dialético bate à porta.

Introdução de Visão em paralaxe.

Download: http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/visao_em_paralaxe_-_introducao.pdf

Fonte: http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Slavoj Zizek - Hollywood hoje: notícias de um FRONT ideológico.

 Prefácio à edição brasileira de Lacrimae rerum.

Download: http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/lacrimae_rerum__prefacio.pdf

Fonte: http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Oscar Pilagallo - "O sistema está aí, e a história continua"

Para Slavoj Zizek, quatro “antagonismos” põem em xeque a economia de mercado 

Seria muito fácil descartar como ultrapassado ou extemporâneo um livro que, mais de duas décadas depois da queda do Muro de Berlim, considera que ainda há no horizonte uma hipótese comunista. 

Antes de deixar o pequeno volume de lado, no entanto, o leitor interessado nos desafios do capitalismo deveria prestar atenção em duas ou três observações de Slavoj Zizek sobre algumas fragilidades do sistema hoje hegemônico. 

O livro se insurge contra a tese do “fim da história” de Francis Fukuyama, segundo a qual, com a ausência da polarização ideológica desde o desmoronamento do comunismo, o capitalismo se impôs de tal maneira que não pode mais ser confrontado, restando apenas a possibilidade de reformas para aprimorá-lo. 

Em seu livro, Zizek sustenta que a história continua viva. O título é tirado da resposta de Marx a Hegel em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Na atualização de Zizek, a tragédia foram os ataques de 11 de setembro de 2001. A farsa seria a crise financeira mundial, a partir de 2008. Os dois eventos, diz o filósofo esloveno, desmontam a concepção de Fukuyama. 

Ao contrário de muitos analistas de esquerda, no entanto, Zizek não cai na esparrela de ficar aguardando a crise terminal do capitalismo a cada solavanco das economias mais ricas. Pensador sofisticado, ele identifica fissuras mais estruturais — daí a relevância de seu livro, independentemente da ideologia do leitor: onde o comunista lerá oportunidades, outros poderão ler alertas. 

O autor identifica quatro “antagonismos” que ameaçam o sistema capitalista global: o perigo da catástrofe ecológica, a inadequação da noção de propriedade privada em relação à propriedade intelectual, as implicações socioéticas da biogenética e as novas formas de apartheid, como muros para conter a imigração e favelas. 

Esses são fatores estruturais. Mas Zizek se debruça também sobre a conjuntura atual. Sobre a bilionária operação de salvamento do sistema bancário, nota a “superposição inesperada” da visão da esquerda com a dos conservadores. De fato, enquanto o documentarista iconoclasta Michael Moore falou em “roubo do século”, os republicanos falaram em “socialismo de Estado”. 

Para o filósofo, não se trata de nenhuma das duas coisas. É claro que não é socialismo — “se for, é de um tipo muito peculiar”, para ajudar os ricos, e não os pobres. Mas também não é roubo. “O slogan populista ‘salvem o povo das ruas, não Wall Street!’ é totalmente enganoso, uma forma de ideologia em seu grau mais puro, porque passa por cima do fato de que, no capitalismo, o que sustenta o povo das ruas é Wall Street! Sem ela, o povo das ruas se afogará no pânico e na inflação”. E conclui: “O paradoxo do capitalismo é que não se pode jogar fora a água suja da especulação financeira e preservar o bebê saudável da economia real”. 

É por isso que Zizek afirma que os democratas que apoiaram o plano de salvamento “não foram incoerentes com sua orientação esquerdista”. Embora não poupe elogios a Barack Obama, o filósofo admite que a atitude do presidente americano não é favorável à perspectiva comunista. “A verdadeira tragédia de Obama é que ele tem toda a probabilidade de vir a ser o derradeiro salvador do capitalismo e, como tal, um dos grandes presidentes conservadores americanos.” 

Como foi possível a Obama capitanear tal processo? Para Zizek, há coisas progressistas que só um conservador consegue fazer. Foi, por exemplo, o republicano Nixon que restabeleceu relações com a China. Da mesma maneira, há coisas conservadoras que só um progressista é capaz de fazer. Foram as credenciais progressistas de Obama, diz Zizek, “que lhe permitiram impor os ‘reajustes estruturais’ necessários para estabilizar o sistema”. 

O autor considera ingênua a esperança de que a crise “abra necessariamente espaço para a esquerda radical”. Seu primeiro efeito, ao gerar o medo, seria, ao contrário, a reafirmação “das premissas básicas da ideologia dominante”. Daí a possibilidade de a principal vítima não ser o capitalismo, “mas a própria esquerda, na medida em que sua incapacidade de apresentar uma alternativa global tornou-se novamente visível a todos”. 

Se o edifício do capitalismo suporta bem o abalo da crise financeira, haveria algo que pudesse comprometê-lo? 

Talvez o distanciamento entre capitalismo e democracia. Ao longo de décadas, e com raras exceções, o sistema econômico e o regime político foram inextricáveis. A China, no entanto, tem praticado o capitalismo num ambiente autoritário, ou, como diz Zizek, “com valores asiáticos”. É um exemplo de que “o potencial autêntico da democracia [...] está perdendo terreno hoje para a ascensão do capitalismo autoritário, cujos tentáculos vêm se aproximando cada vez mais do Ocidente”. 

Ele lembra outros dois exemplos: “O capitalismo de Putin, com seus ‘valores russos’ (demonstração violenta de poder) [e] o capitalismo de Berlusconi, com seus ‘valores italianos’ (exibicionismo cômico)”. 

Tais realidades contrastam com os tempos em que o capitalismo absorvia mudanças sociais, incorporando as ameaças ao sistema como novos valores. Foi assim depois de Maio de 68, quando “o novo espírito do capitalismo recuperou triunfantemente a retórica igualitária e anti-hierárquica [...], apresentando-se como uma revolta libertária bem-sucedida contra as organizações sociais repressoras”. 

Zizek não é, evidentemente, um democrata. Para ele, eleições “tendem a refletir a doxa predominante determinada pela ideologia hegemônica”. Mas não despreza a liberdade formal burguesa “que pôs em marcha o processo de demandas e práticas políticas ‘materiais’, do sindicalismo ao feminismo”. Reduzir isso a mera ilusão “seria cair na velha hipocrisia stalinista”, que zombava da ineficácia das liberdades burguesas, mas as proibia. 

Sim, Zizek é também um crítico do comunismo. Não aceita, por exemplo, o argumento de que Stalin teria traído a revolução. Se o comunismo não deu certo, é porque havia erros no próprio marxismo, e não apenas em sua aplicação. Embora conceba o comunismo como uma “ideia eterna”, rejeita voltar ao ponto em que a experiência foi interrompida. Para ele, é preciso zerar. A propósito, cita Samuel Beckett várias vezes: “Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor”. 

Saudado como uma novidade no campo teórico da esquerda, o autor sabe jogar com os elementos midiáticos que lhe projetam uma imagem de filósofo pop. Carismático e intenso, Zizek cita filmes de Hollywood com a mesma naturalidade com que usa o jargão marxista. Pode ser debatido numa arena política ou citado num jantar inteligente — e nesse caso será útil saber como se pronuncia seu sobrenome: é jijék. 

Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa é um livro que se lê no ritmo acelerado em que parece ter sido escrito. O estilo agitado é também caudaloso, mas o autor consegue evitar digressões, voltando sempre em tempo ao argumento principal: as mazelas do capitalismo. 

Aliás, trata-se de algo em comum com Marx: Zizek tem mais a falar sobre o sistema econômico em que vive do que aquele em que sonha viver. 

***

Oscar Pilagallo é jornalista, autor de A Aventura do Dinheiro (Publifolha).

Paulo Lima - "Slavoj Zizek: o filósofo pop"

Reprodução do texto originalmente publicado no Balaio de Notícias 

O burburinho no foyer do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, só crescia à medida que se aproximava o momento de abertura do auditório, marcado para as 14 horas. Em cartaz, a segunda rodada de palestras do seminário Revoluções, uma política do sensível. No programa, filósofos de longínquos quadrantes gastariam o verbo para discorrer sobre os grandes desafios da contemporaneidade. O título do seminário não deixava margem a dúvidas. Estaria em curso um desfile de ideias, por assim dizer, de viés esquerdista. Por suposto, esperava-se a presença de grupos organizados de movimentos sociais e suas indefectíveis bandeiras, a proferir palavras de ordem. Ledo e rotundo engano. A impressão é que toda a jeneusse dorée de Sampa estava por lá, moçoilas e rapagões a trocar impressões filosóficas numa ágora improvisada no espaço e no tempo. 

Havia uma explicação para tamanho frisson. O convidado do dia, responsável pelo grand finale do seminário, era ninguém menos que o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Com suas performances pontuadas por gestos estabanados e declarações polêmicas, Zizek conseguiu atrair os holofotes da mídia como um insigne porta-voz das causas perdidas, resgatando da mofa e do oblívio termos como comunismo e revolução. 

Num canto do foyer, um estande improvisado punha à venda os livros do filósofo lançados no Brasil pela Boitempo Editorial. Pelo programa do dia, Zizek daria uma sessão de autógrafos após a palestra, rabiscando seus gatafunhos para a posteridade. Na atmosfera descontraída do teatro, podia-se respirar séculos de saber filosófico. Um rapagote discorria com entusiasmo sobre as ideias zizekianas, deixando bem claro para seu interlocutor que não era possível entender o mestre sem antes ter lido Kant, Hegel e, naturalmente, Lacan. 

Já passava das 17 horas, quando um mediador de gestos calmos anunciou o nome de Slavoj Zizek, depois de falar os rapapés de praxe. Adentrando o palco pelo lado esquerdo – palavra! -, Zizek venceu a distância até a mesa num segundo, como se impulsionado por uma descarga elétrica. Aboletou-se em sua cadeira, tirou o relógio do pulso e o pôs sobre a mesa para controlar o tempo, conferiu algumas folhas amarfanhadas e deu início a sua peroração. 

Em poucos minutos, Zizek levou a plateia à primeira gargalhada da tarde, uma entre muitas que viriam, graças a sua habilidade em entremear conceitos, piadas e exemplos extraídos de fatos do cotidiano, principalmente de filmes de Hollywood, muitos deles analisados pelo filósofo à luz da psicanálise lacaniana. Onze de setembro de 2001, crise financeira de 2008, Bill Gates, Obama, Hitler, Stalin, tudo funciona como referência para suas diatribes contra aquilo que chama de “farsa do liberalismo econômico”. 

Por suas referências marxistas e menções a Stalin, Zizek tem sido acusado por seus críticos de defender certa postura totalitária. Mas ele tenta pôr os pingos nos ii. “Marx defendia a transformação das relações sociais. Não há mensagem totalitária nisso”. Aplausos, risadas, excitação da plateia, que se diverte como se estivesse num programa de auditório. Em sua palestra, Zizek faz questão de eliminar as camadas vetustas do léxico filosófico. Nada de episteme, doxa, gnose ou assemelhados. Com uma dicção peculiar que o faz acentuar a pronúncia dos esses como num crepitar, Zizek fala um inglês carregado porém fluente, pondo por terra uma certa máxima tupiniquim de que só é possível filosofar em alemão. 

Por seus gestos irrequietos, o filósofo recebeu o epíteto de “Elvis da filosofia”, que ele aceitou. No palco, seus cacoetes incluem esfregões reiterados no nariz, que descem para o queixo e terminam com um safanão nos cabelos. Sua torrente verbal é também pontuada por puxões na camisa e extrema agitação das mãos, como se quisesse exortar uma multidão invisível. Zizek mostrou que é um ótimo frasista. “Não sou um catastrofista”, disse ele, numa alusão ao título de sua palestra – “Revolução: quando a situação é catastrófica, mas não é grave”. E, para quem o acusa de professar o memento mori do capitalismo, surpreendeu o público com mais uma colocação aparentemente contraditória. “O capitalismo não é só exploração, mas uma forma eficiente de organização”. Como um bom provocador, cutucou velhas bandeiras (“A sustentabilidade é um mito”). E expôs o receituário que explica o fracasso das revoluções passadas: “Se você tem um projeto, tem que incluir como esse projeto vai dar errado”. Por seu sabor atemporal, a frase poderia ser usada como um ensinamento típico da autoajuda. Por que não? Zizek atingiu o proscênio ao teorizar os fenômenos sociais e culturais por meio de uma análise que põe no mesmo liquificador a psicanálise de Lacan, a filosofia de Marx e Hegel. Numa de suas frases, proferida em alto e bom som, ele disse: “Sou um hegeliano”. A rigor, não é o primeiro filósofo a atingir o status de pensador discutido por um público mais amplo. Outros luminares já frequentaram as hostes midiáticas com leituras criativas da sociedade e, como que obliterados por uma espécie de lei implacável do esquecimento, retornaram aos muros da academia e aos índices remissivos. Enumeremos alguns: Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, nos anos 1980; Noam Chomsky e Jürgen Habermas, nos anos 1990; Pierre Bourdieux e Jean Baudrillard, nos anos 2000. Grosso modo. 

A cortina já estava prestes a descer, quando Zizek disparou mais uma de suas frases de efeito: “O comunismo é o grande problema central hoje”. Seu tempo de palestra acabou. Aplausos frenéticos, como ao final de um show. Zizek surpreendeu-se com os primeiros papelotes que chegaram às mãos do mediador, contendo as perguntas enviadas pela plateia. O filósofo levou as mãos à cabeça, num teatral gesto de desespero. Mas respondeu todas, com o mesmo vigor com que iniciou sua palestra. Deixou o palco com o mesmo arranque com que entrou, e lá ao canto do palco foi cumprimentado por Emir Sader e outras personalidades que foram ouvi-lo. Zizek é pop.

Slavoj Zizek - "Entre as duas revoluções"

Prefácio à "As Portas da Revolução"

Donwload: http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/as_portas_da_revolucao_prefacio.pdf

Fonte: http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

terça-feira, 26 de julho de 2011

Alysson Mascaro - Žižek e o pensamento crítico hoje

Download: http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/zizek_e_o_pensamento_critico_hoje.pdf

Fonte: http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Christian Dunker - Biografia comentada de Slavoj Žižek

Download: http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/biografia_comentada_de_slavoj_zizek_por_christian_dunker_0.pdf

Fonte: http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

domingo, 24 de julho de 2011

Começar do começo de novo

Por Slavoj Žižek.
Traduzido do inglês por Fernando Marcelino e Chrysantho Sholl.
Existe uma anedota (apócrifa, é verdade) sobre a troca de telegramas entre quartéis generais alemães e austríacos durante a Primeira Guerra Mundial: os alemães mandam uma mensagem: “aqui, de nosso lado do front, a situação é séria, mas não catastrófica”, a que respondem os austríacos: “aqui, a situação é catastrófica, mas não séria”. Não seria esta a maneira como nós, cada vez mais, ao menos no mundo desenvolvido, nos relacionamos com nossa situação global? Todos nós sabemos sobre a catástrofe iminente – ecológica, social –, mas de alguma forma não podemos levá-la a sério. Em psicanálise chamamos esta atitude de virada fetichista: Eu sei muito bem, mas… (eu não acredito realmente), e tal virada é a clara indicação da força material da ideologia, que nos faz recusar aquilo que vemos e que sabemos. Como chegamos até aqui?
Quando, em 1922, depois de vencer a Guerra Civil contra todos os adversários, os bolcheviques tiveram de retroceder para a NEP (a “Nova Política Econômica” que permitiu uma interferência muito maior da economia de mercado e da propriedade privada), Lenin escreveu um pequeno texto “On Ascending a High mountain” [Escalando uma montanha]. Ele usa o símile de um escalador que tem de recuar ao pé da montanha para empreender uma nova tentativa de atingir o pico, para descrever o que um retrocesso significa num processo revolucionário, i.e., como alguém pode retroceder sem oportunisticamente trair sua fidelidade à Causa. Depois de enumerar os sucessos e fracassos do estado Soviético, Lenin conclui: “Comunistas que não têm ilusões, que não se rendem ao desânimo, e que preservam a força e a flexibilidade ‘para começar desde o começo’ de novo e de novo, frente a uma tarefa extremamente difícil, não estão fadados ao erro (e muito provavelmente não perecerão).” Este é Lenin em seu melhor estilo Beckettiano, ecoando o sentido de Worstward Ho: “Tente novamente. Fracasse novamente. Fracasse melhor” [Try again. Fail again. Fail better]. Sua conclusão – começar do começo de novo e de novo – deixa claro que ele não está falando de desacelerar o progresso e fortalecer o que já se conquistou, mas precisamente descer novamente ao ponto inicial: devemos “começar do começo” e não de onde conseguimos chegar no primeiro esforço da escalada. Em termos kierkegaardianos, um processo revolucionário não é um progresso gradual, mas um movimento repetitivo, o movimento de repetir o começo de novo e de novo… e aqui é exatamente onde estamos hoje, depois do “desastre obscuro” de 1989, o fim definitivo da época que começou com a Revolução de Outubro. Devemos, portanto, rejeitar a continuidade com aquilo que a Esquerda significou nos últimos dois séculos. Embora momentos sublimes como o clímax jacobino da Revolução Francesa e a Revolução de Outubro permanecerão para sempre um momento chave de nossas memórias, essas histórias chegaram ao fim, tudo deve ser re-pensado, devemos começar do ponto-zero.
Alain Badiou descreveu três formas distintas de fracasso para um movimento revolucionário. Primeiro, existe, é claro, a derrota direta: alguém é simplesmente esmagado pelas forças inimigas. Depois existe a derrota na própria vitória: alguém vence o inimigo (temporariamente, pelo menos) pela incorporação da principal agenda política do inimigo (o objetivo é tomar o poder estatal, na forma democrático-parlamentar ou numa direta identificação do Partido com o Estado). Acima destas duas versões existe, talvez, a mais autêntica, mas também mais aterrorizadora forma de fracasso: guiado pelo instinto correto que diz que qualquer consolidação da revolução num novo poder estatal é igual à sua traição, porém incapaz de inventar e impor sobre a realidade social uma verdadeira ordem alternativa, o movimento revolucionário se engaja numa estratégia desesperada de proteger sua pureza pelo recurso “ultra-esquerdista” de terror destrutivo. Badiou habilmente chama esta última versão de “tentação sacrificial do vazio” [sacrificial temptation of the void].
Um dos maiores slogans maoístas dos anos vermelhos era: “ouse lutar, ouse vencer”. Mas sabemos que, se não é fácil seguir este slogan, se a subjetividade tem medo não tanto de lutar, mas de vencer, é porque lutar a expõe ao simples fracasso (o ataque não foi bem sucedido), enquanto vencer a expõe ao mais temível dos fracassos: a consciência de que se venceu em vão, que a vitória prepara repetição, restauração. Que uma revolução nunca é algo além de um “entre-dois-Estados”. É daqui que a tentação sacrificial do vazio aparece. O inimigo mais temível das políticas de emancipação não é a repressão pela ordem estabelecida. É a interioridade do niilismo, e a crueldade sem limites que pode acompanhar este vazio.”
O que Badiou diz efetivamente aqui é o exato oposto do “Ouse vencer!” de Mao – deve-se ter medo de vencer (de tomar o poder, estabelecer uma nova realidade sóciopolítica), porque a lição do século XX é que ou a vitória termina em restauração (retorno à lógica de poder do Estado) ou é capturada pelo ciclo auto-destrutivo da purificação. É por isso que Badiou propõe substituir purificação por subtração: em vez de “vencer” (tomar o poder) devemos criar espaços subtraídos do Estado. Ele não está sozinho. Um medo ronda a (o que quer que reste da) esquerda radical de hoje: o medo de confrontar-se diretamente com o Poder de Estado. Aqueles que ainda insistem em lutar contra o Poder estatal, deixado sozinho no comando, são imediatamente acusados de ainda estarem presos ao “velho paradigma”: a tarefa de hoje é resistir ao Poder estatal recuando de sua esfera de atuação, subtraindo-se dele, criando novos espaços fora de seu controle. Este dogma da esquerda contemporânea é melhor capturado pelo título do novo livro-entrevista de Tony Negri: Adeus, Senhor Socialismo!. A idéia é que a época da velha esquerda em suas duas versões, reformista e revolucionária, ambas as quais pretendiam tomar o poder do Estado e proteger os direitos coorporativos da classe trabalhadora, acabou.
Mas esta análise se sustenta? A primeira coisa a fazer é empreender uma fórmula mais complexa do Partido-Estado como a figura que definiu o Comunismo do século XX: sempre houve uma lacuna entre os dois, o Partido permaneceu a semi-escondida sombra obscena que remontava à estrutura do Estado. Não há necessidade de demandar uma nova distância políticaem relação ao Estado: o Partido É esta distância, sua organização dá corpo a uma forma fundamental de desconfiança do Estado, dos seus órgãos e mecanismos, como se precisassem ser controlados, mantidos sob vigilância a todo tempo. Um verdadeiro Comunista do século XX jamais aceitou completamente o Estado: sempre teve de haver uma agência vigilante fora do controle das leis (do Estado) e com poder de intervir no Estado.
Segundo ponto. 1989 representou não apenas a derrota conjuntural do socialismo de estado e das sociais-democracias ocidentais – a derrota vai muito mais fundo. O raciocínio da Esquerda após 1989 era: a estratégia de tomar o poder falhou miseravelmente em seus objetivos, de modo que a Esquerda deveria adotar uma estratégia diferente, a primeira vista mais modesta, mas, de fato, muito mais radical: recuar do poder estatal e concentrar-se em transformar diretamente a própria textura da vida social, as práticas cotidianas que sustentam todo o edifício social. Esta posição teve a forma mais elaborada com John Holloway: “como fazer uma revolução sem tomar o poder?”.  A principal forma de democracia direta de multidões “expressivas” no século XX foram os chamados conselhos (“sovietes”) – (quase) todo mundo no Ocidente os amava, até mesmo liberais como Hannah Arendt que percebia neles um eco da velha vida grega na pólis. Ao longo da era do Socialismo Realmente Existente, a esperança secreta dos “socialistas democráticos” era a democracia direta dos “sovietes”, os conselhos locais como formas de auto-organização do povo; e é profundamente sintomático como, com o declínio do Socialismo Realmente Existente, essa sombra emancipatória que rondava a todo o momento também desapareceu – não será esta a maior confirmação do fato que a versão-conselho do “socialismo democrático” era apenas um duplo espectral do “burocrático” Socialismo Realmente Existente, a transgressão inerente sem substancial conteúdo positivo propriamente seu, i.e., incapaz de servir como o princípio organizador e permanente de uma sociedade? O que tanto Socialismo Realmente Existente como a democracia-de-conselhos tem em comum é a crença na possibilidade de uma organização auto-transparente da sociedade que superasse a “alienação” política (aparelhos estatais, regras institucionalizadas da vida política, ordem jurídica, polícia etc.) – e não seria a experiência básica do fim do Socialismo Realmente Existente precisamente a rejeição desta característica comum, a resignada aceitação pós-moderna do fato de que a sociedade é uma rede complexa de “subsistemas”, razão pela qual um certo nível de “alienação” é constitutivo da vida social, de forma que uma sociedade totalmente autotransparente é a utopia com potenciais totalitários. Não a toa que o mesmo vale para as práticas contemporâneas de “democracia direta”, das favelas a cultura digital “pós-industrial” (as descrições das novas comunidades “tribais” de hackers não evocam freqüentemente a lógica da democracia-de-conselhos?): todas tem de apoiar num aparelho de estado, i.e, por razões estruturais, elas não podem dominar todo o espaço. A máxima de Negri “não há governo sem movimentos” deve ser contestada com “não há movimentos sem governo”, sem o poder estatal que sustente o espaço para os movimentos. É esta tensão entre democracia representativa e direta expressão dos “movimentos” que nos permite formular a diferença entre um partido político democrático comum e o Partido “mais forte” (como o Partido Comunista): um partido político comum assume plenamente sua função representativa, toda sua legitimação é dada pelas eleições, enquanto o Partido considera secundário o procedimento formal das eleições democráticas em relação à dinâmica propriamente política dos movimentos que “expressam” sua força.


Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/category/colunas/slavoj-zizek/

sábado, 23 de julho de 2011

Quando Lady Gaga e Zizek tiveram um affaire

"Há um grupo de esquerda anárquica aqui em Londres que me odeia", diz Slavoj Zizek com uma risadinha afetada, enquanto nos acomodamos em um dilapidado sofá de couro num bar de hotel em Bloomsbury. Ele está usando meias fornecidas gratuitamente por uma companhia aérea, uma camiseta italiana que alguém lhe deu e uma calça jeans que poderia ter sido feita décadas antes em uma fábrica fracassada de tratores soviéticos. "Mas, que se dane, vamos falar francamente, sem rodeios --a maior parte da esquerda me odeia, apesar de eu supostamente ser um dos mais importantes intelectuais comunistas do mundo."
Zizek chama o garçom e pede chocolate quente, Diet Coke e muito açúcar ("sou diabético"). Está desapontado, me diz entre parênteses, porque não estamos fazendo a entrevista no adjacente bar Virginia Woolf, que serve hambúrgueres. "Como seria um hambúrguer Virginia Woolf?", indaga. "Ressecado, coroado com salsinha, totalmente superestimado. Eu sempre preferi Daphne du Maurier." Então, ele se lança em uma crítica às pretensões de James Joyce, argumentando que a carreira literária de Joyce desandou depois de "Dublinenses", e, em seguida, em um panegírico ao minimalismo radical de "Not I", de Samuel Beckett. Dentro de minutos, já passamos para as visões do filósofo alemão Peter Sloterdijk sobre o milagre econômico da Malásia, as perspectivas do curso de teoria do cinema que Zizek vai dar em Ramallah e a produção feita por Katarina Wagner de "Die Meistersinger von Nürnberg" (os mestres cantores de Nuremberg), em que Hans Sachs é retratado como um nazista saudador de Hitler. Como leitor ou entrevistador de Zizek, a tarefa que nos cabe é rapidamente construir uma rede de pontes suspensas mentais para interligar os territórios intelectuais dele, aparentemente autônomos.

De volta aos anarquistas obscuros. Foram eles (o pessoal de relações públicas de Zizek sugere que seja um grupo de estudantes armados não com bombas incendiárias, mas com uma conta falsa no Facebook) que o caluniaram online, declarando que ele estaria tendo "uma coisa" com a cantora Stefani Joanne Angelina Germanotta, também conhecida como Lady Gaga. Foi uma brincadeira, é claro, mas que setores do que Sarah Palin descreve como a mídia "lamestream" (a grande imprensa boba) resolveram passar adiante, entre eles o "New York Post" e o britânico "Daily Star", tendo este último divulgado: "Amigos de Lady Gaga temem que o esloveno Slavoj Zizek esteja enchendo a cabeça dela de ideias extremistas".

O que irritou o não-lorde Gaga não foi tanto a inversão dialética hegeliana injustificada (com certeza, teria sido mais plausível que ele fosse corrompido pelas ideias extremistas dela, não?), mas o fato de a falsa página do Facebook ter alegado que Lady Gaga e Zizek consolidaram seu relacionamento desconstruindo a ideologia patriarcal, o feminismo e a responsabilidade humana coletiva. Foi uma calúnia intolerável: "Eu não falo desse tipo de coisa. Dá para imaginar uma noite mais chata do que essa?". Então, como você teria passado uma noite com Lady Gaga? Ele ri discretamente, mas evita responder (Zizek faz muitas coisas enquanto conversa, mas responder perguntas não é uma delas).

"Meu erro foi que eu não deveria ter desmentido o relacionamento categoricamente à imprensa. Eu deveria ter dito 'nada a declarar', deixando em aberto a possibilidade obscena de eu ser amante dela." É possível que haja uma brecha em sua vida amorosa: Zizek foi casado com a filósofa eslovena Renata Saleci e com a modelo e estudante lacaniana argentina Analie Hounie, mas se nega a me dizer se elas têm uma sucessora atual. Ele tem dois filhos, um de 30 e poucos anos, o outro com 10 anos de idade.

DYLAN DA FILOSOFIA

O hegeliano lacaniano esloveno de 62 anos está em Londres não para confrontar anarquistas importunos, mas para promover seu livro "Living in the End Times" (vivendo no fim dos tempos) e debater com Julian Assange sobre o significado do WikiLeaks. Zizek é professor da European Graduate School, na Suíça, diretor internacional do Instituto Birkbeck de Humanidades da Universidade de Londres, pesquisador sênior do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e professor visitante habitual em uma ou outra universidade americana. Ele raramente está em casa, em seu apartamento na capital eslovena: é a resposta da filosofia a Bob Dylan, vocalista de um show itinerante ao vivo que não dá sinais de que vá terminar.

O livro, que ele não hesita em criticar ("escrevi sobre 'Avatar' antes de ter visto o filme, mas, tendo visto, tive razão em atacá-lo... A sugestão de que o capitalismo estaria prestes a desabar talvez seja uma fantasia, reconheço"), representa o que seu pensamento tem de melhor e de pior: seus relâmpagos de genialidade revelam uma mente que parece ser incapaz de acompanhar um pensamento por mais de uma página e meia.

Sua performance com Assange e com a jornalista americana radical Amy Goodman no teatro Troxy, na zona leste de Londres, mostrou ser melhor --em parte performance teatral com o efeito de murchar a pomposidade, em parte crítica devastadora do capitalismo contemporâneo. "Tenho que subverter esses eventos", ele me diz mais tarde. "As perguntas piedosas, os discursos solenes. Meu Deus, como é possível assistir a essas coisas até o fim sem ter vontade de contar uma piada?"

Cerca de 40 minutos depois de iniciado o evento, ele cedeu à tentação e, por um momento, se metamorfoseou em Frankie Boyle, comediante escocês. "'Tenho uma notícia boa e outra ruim', diz um médico a um marido. 'Sua mulher está viva. A má notícia é que ela está com incontinência anal e vaginal tão grave que não pode ter relações sexuais.' O marido fica revoltado. Qual é a graça? O médico está apenas brincando: a boa notícia é que a mulher morreu." Vale a pena assistir à cena no YouTube apenas para registrar como Goodman e Assange se esforçam heroicamente para esconder sua repulsa. Assange, não custa reconhecer, também conservou a compostura quando Zizek o chamou de terrorista. "Você é terrorista da maneira como Gandhi foi. Em que sentido Gandhi foi um terrorista? Ele tentou impedir o funcionamento normal do Estado britânico na Índia. Você está tentando impedir o funcionamento normal da circulação de informações."

Zizek estava falando totalmente a sério. Ele escreveu sobre isso em um ótimo ensaio, argumentando contra uma interpretação liberal do WikiLeaks que reduz seu impacto a "um caso radical de 'jornalismo investigativo'. Aqui, estamos a apenas um passo da ideologia de blockbusters de Hollywood como 'Todos os Homens do Presidente' e 'O Dossiê Pelicano', em que dois sujeitos comuns descobrem um escândalo que chega até o presidente, forçando-o a renunciar. Comprova-se que a corrupção chega até o mais alto escalão, mas a ideologia de obras como essas reside em sua mensagem final e otimista: nosso país deve ser um grande país, considerando que dois sujeitos comuns como você e eu podemos derrubar o presidente, o homem mais poderoso da Terra!"

"Na realidade, não descobrimos nada de novo com o WikiLeaks", ele me diz mais tarde. "Julian é como o garoto que nos conta que o imperador está nu --até o garoto dizê-lo, todo o mundo podia fazer de conta que o imperador não estava nu. Não confunda isso com o heroísmo burguês comum que afirma que existe podridão, mas que o sistema é basicamente sadio. É como um homem que descobre que sua mulher anda transando com outros --até que ele enxergue em detalhes o que ela vem fazendo, pode fazer de conta para si mesmo que não está acontecendo nada de errado. Julian joga por terra esse fingimento. Todo poder é hipócrita dessa maneira. O que o poder acha insuportável é quando a hipocrisia é desnudada."

OBSCENIDADE ASQUEROSA

Zizek toma um pouco de chocolate quente e limpa a barba. "Falando francamente, eu não deveria ser este homem que fala de 'O Cavaleiro das Trevas' e de Hegel, sobre os valores do WikiLeaks e de Lady Gaga. Eu deveria ser um medíocre professor de filosofia em Liubliana." Ele nasceu em 21 de março de 1949 na capital eslovena, na então Iugoslávia, de pai (Joe) economista e mãe (Vesna) contadora. Teve uma infância infeliz. "Eu lia sozinho, num isolamento freudiano que me preparou para o mundo em toda sua obscenidade asquerosa." Ele me olha com expressão animada: "Espero que, quando você escrever isto, não seja o jornalista de merda normal que sempre é fiel aos fatos. Espero uma distorção criativa de minha biografia. A verdade é superestimada: sempre fui mais feliz sozinho. Por que isso seria algo interessante de ler?"

Ele subestima sua vida. Adolescente, Slavoj queria ser diretor de cinema, mas deixou essa ambição de lado depois de ser seduzido por Hegel. Como outros filósofos eslovenos em ascensão, foi influenciado pelas leituras do "Capital" de Marx feitas pelo filósofo Boidar Debenjak, sob o viés da Escola de Frankfurt, desde a perspectiva da "Fenomenologia do Espírito", de Hegel. "Hegel é tudo para mim. Suas obras reunidas ainda são o bem que eu mais prezo", diz ele. Porém, mais tarde, ele foi seduzido pelos pós-estruturalistas franceses --Derrida, Kristeva e, sobretudo, o teórico da psicanálise Jacques Lacan. Zizek foi demitido do cargo de pesquisador assistente da Universidade de Liubliana quando sua tese de doutorado foi rejeitada por ser não marxista. Passou quatro anos prestando serviço militar e outros quatro desempregado, antes de conseguir trabalho como escrivão no Centro Marxista Esloveno, onde se envolveu com acadêmicos engajados com a psicanálise lacaniana.

Ele passou o início da década de 1980 em Paris, estudando psicanálise com Jacques-Alain Miller e François Regnault, retornando então à Eslovênia, onde se uniu a grupos dissidentes que criticavam o regime de Tito. "Fui membro do Partido Comunista até 1988, quando se tornou revoltante permanecer em um partido que defendia o militarismo." Após a queda de Tito, Zizek --que já se tornara uma figura celebrada em seu país, como colunista da revista alternativa jovem "Mladina" e como um dos líderes do Comitê para a Defesa dos Direitos Humanos-- decidiu candidatar-se à Presidência da República da Eslovênia nas primeiras eleições livres, em 1990. Concorreu pelo partido Democracia Liberal e alcançou a quinta colocação. "A política", ele reflete, "sempre foi uma coisa desprezível. É algo em que eu me envolvo frequentemente contra minha vontade. Meu interesse primeiro é a teoria. Sou um hegeliano em busca de fatos que se encaixem na teoria."

Durante esse período, ele desenvolveu seu estilo literário em revistas e periódicos dissidentes, com pensamento marxista, hegeliano e lacaniano justaposto a análises críticas do cinema e da cultura popular, apresentadas em um equivalente escrito (e às vezes exasperante) de uma improvisação jazzística. Seu primeiro livro a sair em inglês, "The Sublime Object of Ideology" (o objeto sublime da ideologia), de 1989, levou esse estilo a um público mais amplo. Empregou exemplos da alta e baixa cultura para explicar seu entendimento da dialética de Hegel, a tese básica que fundamenta todas as suas análises e que constata que a contradição é a condição interna de cada identidade. A contradição era também a condição interna de Slavoj Zizek, confirmando o ditado de Oscar Wilde: "Os bem-educados contradizem outras pessoas. Os sábios contradizem a si mesmos". "Meu pensamento se movimenta tão rapidamente --como poderia deixar de estar repleto de contradições?", pergunta Zizek.

Mais livros em inglês se sucederam rapidamente, incluindo "Eles Não Sabem o que Fazem" (1991, um livro que apresenta o ressurgimento do nacionalismo militante e do racismo nos ex-países socialistas da Europa do Leste como uma erupção lacaniana de gozo), "Tarrying with the Negative: Kant, Hegel and the Critique of Ideology" (demorando-se com o negativo: Kant, Hegel e a crítica da ideologia) (1993), "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (2002), "A Visão em Paralaxe" (2006) e "Em Defesa das Causas Perdidas" (2008).

PENSADOR 2.0

Esses livros (e vários outros) valeram a Zizek muitos elogios. Terry Eagleton o descreveu como "o mais assustadoramente brilhante expoente da psicanálise --em verdade, da teoria cultural em geral-- surgido na Europa em algumas décadas". A diretora de cinema Sophie Fiennes, que o dirigiu em "The Pervert's Guide to the Cinema" (o guia cinematográfico dos perversos), um documentário de 2005 do Channel 4 em que ele propõe análises maravilhosamente lacanianas de alguns de seus filmes favoritos, fala: "Zizek é um pensador próprio para nossas vidas turbulentas, em alta velocidade, comandadas pela informação, precisamente porque ele insiste na liberdade de parar e pensar profundamente sobre quem você é como indivíduo nesta sociedade fragmentada." O "Chronicle of Higher Education" o descreveu como "o Elvis da teoria cultural".

O textinho de divulgação na sobrecapa de seu novo livro diz que ele fez a filosofia ser relevante para toda uma geração de leitores politicamente engajados. Zizek discorda. "Boa parte do que eu escrevo é blablablá, bobagem, algo que desvia minha atenção do livro de 700 páginas sobre Hegel que eu deveria estar escrevendo."

Em 2009, respondendo a um chamado de seu amigo, o filósofo parisiense Alain Badiou, pela reconsideração do comunismo, Zizek participou de uma conferência em Londres para testar a noção de que o capitalismo estaria (mais uma vez) prestes a se fragmentar em função de suas próprias contradições, e que, portanto, era imperativo teorizar o futuro emancipado. Ele então coeditou "The Idea of Communism" (a ideia de comunismo), um livro que exorta camaradas que abandonaram o comunismo a hastear a bandeira vermelha outra vez. "Não tenha medo, junte-se a nós, volte!", escreveu Zizek. "Você já curtiu sua diversão anticomunista e foi perdoado por ela. É hora de voltar à seriedade!"

Você é ou alguma vez já foi comunista? "Não como você poderia imaginar. Marx escreveu sobre os bens comunais --ele se referia à terra e à propriedade. Eu me refiro à informação. Quando pagamos aluguel a Bill Gates, isso é um novo tipo de cerco. O WikiLeaks representa uma ameaça a esse tipo de controle da informação."

Você realmente acredita em uma sociedade desse tipo? "Sou filósofo, não profeta. Não respondo perguntas, mas as formulo para fazer uma crítica de nossa sociedade. Walter Benjamin disse que cabe ao pensador de esquerda não andar no trem da história, mas aplicar o freio. É importante, também, não dizer o que todas as outras pessoas estão dizendo. É entediante, por exemplo, eternamente criticar os Estados Unidos. Por que não criticar a China, em vez disso? Afinal, é na China que foram proibidas as obras de ficção que visualizem mundos alternativos --eles têm medo da imaginação de seus cidadãos. É a China que está colonizando a África."

Em "Living in the End Times", Zizek imagina como seria uma nova sociedade comunista. Ele vê como protótipos tanto o seriado "Heroes", de 2006, da NBC, quanto o romance de 1953 de Theodor Sturgeon "More Than Human". Ambos têm "a ideia central de uma comunidade alternativa de pessoas aberrantes, onde um grupo de párias forma um novo coletivo" baseado em suas capacidades psicofísicas incomuns (telecinesia, telepatia e assim por diante). Zizek escreve: "A união deles como o novo Um cria as condições para que suas peculiaridades desabrochem. Esse coletivo estranho não nos recorda a afirmação de Marx de que, em uma sociedade comunista, a liberdade de todos será fundamentada na liberdade de cada indivíduo?" Como a descrição feita por Marx da sociedade comunista, isso certamente é demasiado incompleto para fundamentar uma plataforma política. "Sou totalmente pessimista quanto ao futuro, quanto à possibilidade de uma sociedade comunista emancipada. Mas isso não significa que eu não queira imaginá-la."

É hora de Zizek partir. "Meu filho e eu vamos assistir a 'Transformers'." Ele se refere ao terceiro e último capítulo da péssima franquia. Parece que é muito ruim, eu o previno. "Já fui ver outros filmes muito ruins. Sempre há alguma coisa que vale a pena ser vista."

Cibermundo S/A

Artigo de Slavoj Žižek publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
Dizem que, na China, a maldição lançada quando realmente se detesta alguém é: “Que você viva em tempos interessantes!” Em nossa história, “tempos interessantes” são, efetivamente, as épocas de agitação, guerra e luta pelo poder em que milhões de espectadores inocentes sofrem as consequências. Nos países desenvolvidos, nos aproximamos claramente de uma nova época de tempos interessantes. Depois das décadas (da promessa) de Estado do bem-estar social em que os cortes financeiros se limitavam a breves períodos e se apoiavam na promessa de que tudo logo voltaria ao normal, entramos num novo período em que a crise – ou, melhor, um tipo de estado de emergência econômica -, com a necessidade de todos os tipos de medidas de austeridade (corte de benefícios, redução dos serviços gratuitos de saúde e educação, empregos cada vez mais temporários, etc.), é permanente e se transforma em constante, tornando-se simplesmente um modo de viver. Além disso, hoje as crises ocorrem em ambos os extremos da vida econômica e não no núcleo do processo produtivo: ecologia (externalidade natural) e pura especulação financeira. Por isso é importantíssimo evitar a solução simples do senso comum: “Temos de nos livrar dos especuladores, pôr ordem nisto aqui, e a verdadeira produção continuará”; a lição do capitalismo é que, aqui, as especulações “irreais” são o real; se as esmagamos, a realidade da produção sofre.
Essas mudanças não podem deixar de abalar a confortável posição subjetiva dos intelectuais radicais. No tratamento psicanalítico, aprendemos a esclarecer nossos desejos: quero mesmo essa coisa que quero? Vejamos o famoso caso do marido envolvido numa apaixonada relação extraconjugal que sonha o tempo todo com o momento em que a esposa desaparecerá (morrerá, se divorciará dele ou o que for) para então viver por inteiro com a amante; quando isso finalmente acontece, todo o seu mundo desmorona, ele descobre que também não quer a amante. Como diz o velho ditado, há coisa pior do que não conseguir o que se quer: realmente conseguir. Agora os acadêmicos esquerdistas se aproximam de um desses momentos de verdade: queriam mudanças reais? Pois tomem! Em 1937, George Orwell, em O Caminho Para Wigan Pier, caracterizou com perfeição essa atitude ao ressaltar “o fato importante de que toda opinião revolucionária tira parte da sua força da convicção secreta de que nada pode ser mudado”: os radicais invocam a necessidade de mudança revolucionária como um tipo de sinal supersticioso que levará a seu oposto, impedir que a mudança realmente ocorra. Quando acontece, a revolução tem de ocorrer a uma distância segura: Cuba, Nicarágua, Venezuela… De modo que, embora meu coração se anime ao pensar nos eventos distantes, eu possa continuar promovendo minha carreira acadêmica.
Essa nova situação não exige, de modo algum, que abandonemos o trabalho intelectual paciente sem nenhum “uso prático” imediato: hoje, mais do que nunca, é preciso não esquecer que o comunismo começa com o que Kant chamou de “uso público da razão”, com o pensamento, com a universalidade igualitária do pensamento. Quando diz que, do ponto de vista cristão, “não há homens nem mulheres, não há judeus nem gregos”, Paulo afirma que raízes étnicas, identidade nacional, etc., não são uma categoria da verdade; para usar termos kantianos exatos, quando refletimos sobre nossas raízes étnicas praticamos o uso privado da razão, restrito por pressupostos dogmáticos contingentes, isto é, agimos como indivíduos “imaturos”, não como seres humanos livres que se concentram na dimensão da universalidade da razão. Para Kant, o espaço público da “sociedade civil mundial” designa o paradoxo da singularidade universal, de um sujeito singular que, num tipo de curto-circuito e contornando a mediação do particular, participa diretamente do universal. Nesse ponto de vista, o “privado” não é a matéria-prima de nossa individualidade oposta aos laços comunitários, mas a própria ordem institucional-comunitária de nossa identificação particular.
A luta, portanto, deveria se concentrar nos aspectos que constituem uma ameaça ao espaço público transnacional. Parte desse impulso global rumo à privatização do “intelecto global” é a tendência recente de organizar o ciberespaço rumo à chamada “computação em nuvem”. Há uma década, o computador era uma caixa grande em cima da mesa, e a transferência de arquivos se fazia com discos flexíveis e pen drives; hoje, não precisamos mais de computadores individuais potentes, já que a computação em nuvem se baseia na internet, isto é, os programas e as informações são fornecidos aos computadores ou celulares inteligentes sempre que necessário, disfarçados de ferramentas ou aplicativos baseados na internet que os usuários podem acessar e usar por meio de navegadores como se fossem programas instalados no computador. Dessa maneira, podemos ter acesso às informações onde quer que estejamos pelo mundo, em qualquer computador, e os celulares inteligentes põem esse acesso literalmente em nosso bolso. Já participamos da computação em nuvem quando realizamos buscas e obtemos milhões de resultados numa fração de segundo; o processo de busca é feito por milhares de computadores interligados que compartilham recursos na nuvem. Do mesmo modo, o Google Books torna disponíveis milhões de livros digitalizados, a qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. Sem falar do novo nível de socialização criado pelos celulares inteligentes que combinam telefone e computador: hoje, um celular desses tem um processador mais potente do que um computador-caixona de dois anos atrás e ainda está ligado à internet, de modo que, além de ter acesso a um volume imenso de dados e programas, também posso trocar instantaneamente mensagens de voz e videoclipes, coordenar decisões coletivas, etc.
No entanto, esse novo mundo maravilhoso é apenas um lado da história, que lembra aquelas famosas piadas de médico sobre “primeiro a notícia boa, depois a má”. Os usuários, portanto, acessam programas e arquivos guardados bem longe, em salas climatizadas com milhares de computadores – ou, para citar um texto de propaganda da computação em nuvem: “Os detalhes são subtraídos aos consumidores, que não têm mais necessidade de conhecer nem controlar a infraestrutura da tecnologia ‘na nuvem’ que lhes dá suporte”. Aqui, duas palavras são reveladoras: subtração e controle; para gerenciar a nuvem, é preciso que haja um sistema de monitoração que controle seu funcionamento, e, por definição, esse sistema está escondido do usuário. O paradoxo, portanto, é que, quanto mais personalizado, fácil de usar, “transparente” no seu funcionamento for o pequeno item (celular inteligente ou portátil minúsculo) que tenho na mão, mais toda a configuração tem de se basear no trabalho feito em outro lugar, num vasto circuito de máquinas que coordenam a experiência do usuário; quanto mais essa experiência é não alienada, mais é regulada e controlada por uma rede alienada.
É claro que isso serve para qualquer tecnologia complexa: o usuário não faz ideia de como funciona o televisor com controle remoto; no entanto, aqui o degrau a mais é que não apenas a tecnologia como também a escolha e a acessibilidade do conteúdo são controladas. Ou seja, a formação de “nuvens” é acompanhada pelo processo de integração vertical: uma única empresa ou corporação possui cada vez mais todos os níveis do cibermundo, desde o hardware individual (computador, celulares…) e o hardware da “nuvem’ (armazenamento dos programas e dados acessíveis) até o software em todas as suas dimensões (programas, material em áudio e vídeo, etc.). Tudo, portanto, é acessível, mas mediado por uma empresa que possui tudo, software e hardware, dados e computadores. Além de vender iPhones e iPads, a Apple também é dona do iTunes, onde os usuários compram músicas, filmes e jogos. Recentemente, a Apple também fez um acordo com Rupert Murdoch para que as notícias da nuvem venham dos meios de comunicação dele. Sucintamente falando, Steve Jobs não é melhor do que Bill Gates: em ambos os casos, o acesso global se baseia cada vez mais na privatização quase monopolista da nuvem que oferece o acesso. Quanto mais o usuário individual tem acesso ao espaço público universal, mais esse espaço é privatizado.
Os apologistas apresentam a computação em nuvem como o próximo passo lógico da “evolução natural” do ciberespaço, e embora, de maneira abstrato-tecnológica, isso seja verdadeiro, não há nada “natural” na privatização progressiva do ciberespaço global. Não há nada “natural” no fato de que duas ou três empresas, em posição quase monopolista, além de determinar os preços à vontade possam também filtrar os programas que fornecem, dando a essa “universalidade” nuances específicas que dependem de interesses comerciais e ideológicos. É verdade que a computação em nuvem oferece aos usuários uma riqueza de opções nunca vista; mas essa liberdade de escolha não é mantida pela escolha de um provedor com o qual temos cada vez menos liberdade? Os partidários da abertura gostam de criticar a China pela tentativa de controlar o acesso à internet; mas todos nós não estamos ficando como a China, sendo as nossas funções na “nuvem” semelhantes, de certo modo, ao Estado chinês?


Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/category/colunas/slavoj-zizek/

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Slavoj Zizek - Alfred Hitchcock, ou, A Forma e sua Mediação Histórica

Alfred Hitchcock, ou, A Forma e sua Mediação Histórica
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira
[Este texto constitui a tradução da introdução da obra Everything you always wanted to know about Lacan (But were afraid to ask Hitchcock). ŽIŽEK, Slavoj (Org.) Verso, London & New York, 1992.]

Filósofo Slavoj Zizek e Lady Gaga podem estar vivendo romance, segundo jornal

O celebrado filósofo marxista Slavoj Zizek e a cantora Lady Gaga teriam desenvolvido uma "forte amizade", segundo informações do New York Post. Com o término do relacionamento entre Gaga e seu namorado de longa data, Luc Carl, a cantora foi vista diversas vezes recentemente com o filósofo de 62 anos, que também é amigo de Julian Assange, durante sua turnê no Reino Unido e nos Estados Unidos.
Fontes do Post dizem que Gaga e Zizek discutem feminismo e criatividade humana. Em março, a cantora também esteve com o intelectual durante palestras dele na greve do sindicato acadêmico inglês UCU. De acordo com a publicação, Zizek, assim como Salman Rushdie, tem fama de atrair mulheres bonitas e já foi casado com a modelo argentina Analia Hounie.
Num post intitulado "Communism Knows No Monster" ("O comunismo não conhece monstros", em tradução livre), Slavoj Zizek teria dito que Gaga era "sua boa amiga" e que suas roupas, vídeos e mesmo suas músicas trazem uma mensagem. Segundo ele, o vestido de carne da cantora é uma referência à "ligação entre o imaginário opressivo do patriarcalismo do corpo feminino e a carne, entre o animalismo e o feminino".
O site Wikileaks anunciou no eBay a venda de oito lugares para um jantar com Zizek e Julian Assange em um dos "mais refinados restaurantes de Londres". Na última sexta-feira (17), o preço por pessoa já chegava a US$ 5 mil.
Zizek, que se descreve como um "comunista no senso qualificado" e um "esquerdista radical" será professor visitante na New York University, faculdade em que Gaga estudou. Ele irá ensinar alemão no segundo semestre.
O representante da cantora se recusou a comentar sua relação com Zizek. Já o filósofo diz que a única ligação que compartilha com a cantora foi o apoio à greve da UCU. "Estou muito triste em desapontá-los, mas esses boatos são mentira!", disse.

Notas sobre viver no fim dos tempos I

Por Slavoj Žižek. (Traduzido do inglês por Fernando Marcelino e Chrysantho Sholl.)
Uma emergência econômica permanente
Uma coisa é clara: depois de décadas de Welfare State, quando os cortes sociais eram relativamente limitados e vinham com a promessa de que as coisas retornariam brevemente a normalidade, entramos agora num período em que um tipo de estado de emergência econômico torna-se permanente: transformando-se numa constante, num modo de vida. Isso tráz consigo o medo de medidas de austeridade muito mais selvagens, cortes nos benefícios, reduções dos serviços de saúde e educação e empregos mais precários. A esquerda encara a difícil tarefa de enfatizar que estamos lidando com economiapolítica – que não há nada “natural” em tal crise, que o sistema econômico global existente depende de uma série de decisões políticas – tendo simultaneamente a consciência plena de que, enquanto estivermos no sistema capitalista, a violação de suas regras causa efetivamente quebras econômicas. Então, enquanto entramos claramente numa nova fase de exploração aberta [enhanced] (terceirizações etc.), devemos ter em mente que isto é imposto pelo próprio funcionamento do sistema, sempre na iminência de um colapso financeiro.
Notas para uma definição de cultura comunista
O conto “Josefina, a cantora ou o Povo dos Ratos” (1924) de Kafka nos leva à lógica da exceção constitutiva da ordem da universalidade: Josefina é o Um heterogêneo através do qual o Todo homogêneo do povo é situado (percebe a si mesmo) como tal. – Aqui, entretanto, vemos porque a comunidade de ratos não é uma comunidade hierárquica com um Mestre, mas uma comunidade “Comunista” radicalmente igualitária: Josefina não é venerada como um Mestre ou Gênio carismático, seu público sabe plenamente que ela é apenas um deles. Então a lógica não é sequer a do Líder que, com sua posição excepcional, estabelece e garante a equidade dos seus sujeitos (que são iguais em sua identificação compartilhada com o seu Líder) – Josefina ela própria tem de dissolver sua posição especial nesta equidade. Isto nos leva à parte central da história de Kafka, a detalhada, frequentemente cômica, descrição do modo como Josefina e seu público, o povo, se relacionam um com o outro. Precisamente porque o povo sabe que a função de Josefina é apenas reuni-los, eles a tratam com igualitária indiferença; quando ela demanda “privilégios especiais (isenção de trabalho físico) como compensação pelo seu trabalho ou como reconhecimento de sua distinção única e seu serviço insubstituível a comunidade”, ela não ganha nenhum favor especial.
Notem como Josefina é tratada como uma celebridade, mas não fetichizada – seus admiradores são cientes que não há nada especial nela. Para parafrasear Marx, ela pensa que o povo a admira por ser uma artista, mas na realidade ela é uma artista somente porque o povo a trata como tal. Aqui temos um exemplo de como, numa sociedade Comunista, o Significante-Mestre continua operando, mas desprovido de seu efeito fetichista – a crença de Josefina em si mesma é percebida pelo povo como seu inofensivo e até ridículo narcisismo, que deve ser gentil, mas ironicamente tolerado e sustentado. É assim que os artistas devem ser tratados numa sociedade Comunista – eles devem ser aplaudidos e bajulados, mas não lhes devem ser dado nenhum privilégio material, como isenção do trabalho ou ração especial.


Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/category/colunas/slavoj-zizek/